quarta-feira, 24 de julho de 2013

Dois botes

Quis o destino mais uma vez que se encontrassem naquela ponte andando lado a lado. E, nunca antes na história, o destino se fizera cumprir de tal forma tão esplêndida. Veja você onde é que o barco foi desaguar.

Caminhando a passos lentos, duas pessoas, ao longe, andando na mesma direção. Eram dois velhinhos de cabelos grisalhos, com roupas laranjas e verdes. A senhora tinha o cabelo preso em coque, com uma presilha impossível de identificar àquela distância. O senhor era parcialmente calvo e andava meio manco, com uma bengala negra, com uma pedra que refletia a luz do sol.

Folhas caíam ao vento. E o som do riacho abaixo parecia tranquilizar os pássaros, que cantavam uma melodia suave e gentil. Os peixes nadavam contra a corrente, pulando. Roedores comiam nozes ao pé das árvores, como se nada demais estivesse acontecendo.

Amor é uma fumaça que aparece no meio do juízo pra tumultuar as coisas. E é no brilho das estrelas que ele se empenha mais em funcionar: apagar a lembrança de tudo que é belo, na esperança de tornar o amado naquele ícone pós-moderno. E, assim, fazer-se aquilo que é mais importante na vida do sujeito: a ilusão.

Ela: uma pessoa como qualquer outra, nascida num tempo como qualquer outro. Nativa da rua 13 daquela cidade, tornou-se ícone conhecido ao salvar a vida de um gato que caía de um prédio em chamas. Talvez ele tenha sido jogado, mas o fato é que ele ia morrer, mas ela o salvou. Ela não gosta de cachorros: são pegajosos demais. Adora gatos, porém: eles demonstram toda a indiferença que ela parece sentir pelo mundo.

Ele: um homem diferente de todos os outros, nascido num dia especial, o Natal. Nativo de uma outra cidade, se mudou quando sua mãe faleceu de falência múltipla de órgãos. Não se sabe o motivo exato, na verdade. Tornou-se ícone na escola por ser solitário. Não falava, tampouco ouvia. Parecia-lhe que nada mais valia a pena. Gosta de: ler. Não gosta de: barulho.

Se apaixonou instantaneamente quando o viu. Aqueles olhos escuros despontavam de seu rosto como duas azeitonas numa pizza. Durante os intervalos (popularmente conhecido como "recreio"), ela via que ele se afastava em direção à árvore mais distante, para se sentar, tirar um livro do bolso e começar a devora-lo. Um dia, porém, aproximou-se devagar, com medo de alarma-lo. "Eu gostaria de ficar sozinho, por favor", disse ao ouvi-la, sem mexer os olhos.

Ela, então, tentou uma maneira menos evasiva. Foi a sua frente e se abaixou. Tirou, calmamente, o livro de sua mão. Sem hesitar, ele olhou em seus olhos. Contato imediato de primeiro grau. Imediatamente, suas mãos se tocaram. E ela se aproximou para beija-lo. Olhando para baixo, ele tentou se virar. Ela puxou seu rosto com a mão e roubou o beijo, como se nada mais pudesse impedi-la. "Eu quero ficar sozinho", ele disse se levantando bruscamente e suspirando. "Me deixe sozinho."

Ela estranhou, por um instante, a atitude. Então, percebeu que ele havia deixado o livro para trás. Leu na capa "A Metamorfose - Franz Kafka". Tomou um susto. Largou o livro, de repente quando percebeu que a capa estava cheia de baratas. Felizmente, eram apenas ilustrações. Se levantou e seguiu andando, procurando por ele. Quando o viu, correu para entregar o livro.

Naquela altura do campeonato, o pátio estava vazio, enquanto ele estava sozinho, chorando. Quando ela se aproximou para lhe entregar o livro, ele se levantou, pegou o livro e repetiu: "eu quero ficar sozinho; eu sou sozinho". "Que tal sermos sozinhos juntos?", ela perguntou, indo em sua direção. Ele fez que não com a cabeça e saiu.

Uma ferida, uma vez feita, leva algum tempo para cicatrizar. Na epiderme, leva menos que em outros tecidos, devido sua baixa especialização. Surge o tecido conjuntivo para cobrir a falha, mas a cicatriz sempre estará por lá, lembrando o indivíduo. A dor, psicológica ou não, aumenta cada vez que a lembrança da ferida surge. É como se a dor da feitoria retornasse, cada vez mais forte. Talvez, com o tempo, ela desapareça.

Ao término da aula, ia passando pela ponte quando o viu. Jogava pedras nos patos que lá estavam. As lágrimas desciam e o coração batia acelerado. A cabeça ardia como o fogo do inferno. As lembranças não conseguiam abandona-lo. Segurou suas mãos e o abraçou. O que haveria acontecido?, ela se perguntava.

"Quando eu era criança, minha mãe costumava me levar a um parque como este. As árvores também possuíam esta tonalidade de laranja. Os pássaros também cantavam o dia todo. A calma reinava, como uma deusa. Mas, um dia ela brigou com meu pai. Foi uma briga séria. Ela saiu chorando, me carregando pela mão. Quando chegamos ao parque, ela começou a falar sobre seus problemas. Sinceramente, não me lembro de nenhum; quero esquecer. Então, ela começou a tocar em mim. Passar a mão nos meus cabelos, me chamando de lindo. Eu estava feliz; minha mãe me amava. Mas, ela começou a me machucar. Hoje, eu entendo esse tipo de machucado, todavia naquela época foi muito traumático. Eu precisei ir ao psicólogo por anos. Hoje, ela está presa, mas eu sinto como se estivesse morta, desde aquele dia. Desde então, eu não conseguía tocar em outra mulher sem chorar. Mas, você mudou isso. Me acostumei a te ver, te sentir perto, me vendo."

A vida é um fio que vem, chega e se desenrola, devagar. Cabe a nós saber interpretar seus nós, conforme eles vão aparecendo. E, acima de tudo, cabe a nós saber quais nós são importantes e quais devem ser desfeitos de imediato.

Num momento mais tarde, eles se casaram. Tiveram sua vida e tudo o mais. Nunca esqueceram daquela ponte. E como poderiam? A promessa de voltar sempre lhes consumia a memória.

Cena do filme Sex and the City, na Ponte do Brooklyn

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