sábado, 9 de fevereiro de 2013

Awake

   Eu estava sentado à mesa, no meu restaurante favorito, quando a vi. Eu tomava um café da manhã reforçado, com ovos e leite. Eu não estava esperando encontrar ninguém. Ela passou por mim, deixando seu cheiro, forte e amargo. Lembrou-me de chocolates. As flores que adornavam sua camisa, despontavam de maneira simples e colorida. Eu não tive a chance de ver seus olhos. Seu cabelo era curto, mas ainda era mais longo que o meu. Ela saiu muito rapidamente. Eu corri, desesperado, e a segurei pelos pulsos. Ela se virou para mim. Pareceu surpresa. Se soltou e correu. Eu não fui atrás, pois ainda tinha que pagar a conta. Ela me pareceu familiar. Alguma coisa sobre ela não me era estranho.
   Saindo de lá, fui trabalhar. Passei o dia em meu cubículo, aliado ao computador. Ele era meu fiel escudeiro; aquele que sempre estaria lá, quando eu precisasse. Bebi alguns goles da minha garrafa de café, que mantenho sempre a postos na minha mesa. O dia passou estranhamente devagar. Eu até terminei mais cedo, tudo o que eu devia fazer. Então, tomei consciência de adiantar serviços para o outro dia.
   A noite chegava como uma doença, lenta e terrível. Infectava a alma de maneira esquisita, como quem gosta da morte. A tempestade chegava e me torturava, com sua água, que não parecia terminar. Eu me descobri vendo seus olhos em todo lugar. Aquela menina tinha minha idade, ou um pouco mais. Eu já era jovem quando ela apareceu. Dormi muito mal, naquele dia. Revi sua face em espelhos, enquanto me via, desesperado correndo atrás. Sonhos, por mais difíceis que são, acontecem e merecem, por tudo que é mais sagrado, ser interpretados.
   Eu acordei várias vezes, até que já era cedo e eu precisava sair para trabalhar. Eu estava sem fome. Eu não tenho nada, nem ninguém. Sou pobre e órfão. A vida nem sempre fora fácil, mas eu soube contornar. Trabalhei, novamente, sem que nada de bom acontecesse. Minha maior sorte é que eu não trabalhava lidando com pessoas. Sou contra tudo que é relacionado a isso. Prefiro passar os dias sozinho, fazendo o que sou pago para fazer.

   À noite, cheguei em casa, para acompanhar mais uma noite de trovoadas e água interminável. Meus pesadelos não tinham fim. Toda noite, eu chorava enquanto dormia. Eu só soube disso porque acordava com os olhos inchados e o travesseiro molhado. Eu a vi novamente. A menina estranha, com os olhos brilhantes e cheiro de chocolate meio-amargo. As flores da sua blusa fugiam em direção à luz, todo o tempo, me obscurecendo e me impossibilitando de segui-la.

   Quando acordei, de manhã, o sol brilhava, como se fosse seu primeiro dia no emprego. Eu me sentia feliz, também. O coração doía, os olhos estavam inchados e o travesseiro encharcado, mas eu me sentia feliz. Olhei para o relógio e percebi que estava atrasado. Corri para chegar a tempo no trabalho. Consegui, mas me permiti ficar algum tempo sentado, bebendo café. Refleti a noite anterior. Talvez, eu não devesse ir atrás da menina.
   Eu estava convencido daquilo que tinha dito a mim mesmo. Talvez, e só talvez, eu devesse acatar aquelas palavras. Mas, o destino não quis que isso acontecesse. Assim, no dia seguinte, a vi novamente. Ela estava usando roupas diferentes. Sua camisa se estabelecia em um padrão estranho, similar a teias de aranhas. Eu fui cauteloso. Quando cheguei ao restaurante, era hora do almoço e ela já estava lá, sentada, lendo um livro. Nossos olhos se encontraram quando eu sentei à sua mesa, bem de frente. Ela se sentiu assustada, mas nada disse. Houve uma conexão ali. Perdi todo o horário do almoço tentando decifrá-la. Quando meu tempo acabou, o relógio despertou. Era hora de ir trabalhar.
   Me levantei e segui, sem olhar para trás. Não sentia fome, cansaço ou coisa do gênero. Minhas necessidades deram uma pausa longa o suficiente para que eu passasse o dia me lembrando de seus olhos, escuros e brilhantes, como duas poças de piche. Me perdi em seu olhar para sempre, eu pensava. O trabalho foi longo e parecia que nunca ia acabar. Eu só pensava em ir para casa, sonhar com ela, mais uma vez.
   E foi o que aconteceu. Quando me deitei na cama, sua imagem invadiu meu consciente. Eu ainda estava acordado, ou assim eu achava. Uma imagem apareceu. Era ela, metade mulher e metade-aranha. Prendeu-me em sua teia, privando-me de ar e espaço. Senti enjoos terríveis. Quase vomitei, mais de uma vez. A única coisa que me consolava era sua imagem, que me tomava como um câncer. Eu tentei me libertar mas, a cada tentativa, a teia parecia que ficava mais forte.
   Quando acordei, era manhã. O despertador não tinha tocado. Achei aquilo estranho demais, mas segui para tomar um copo de leite. Segui em direção ao trabalho, onde eu achava que teria um pouco de tranquilidade. Eu estava enganado. Não havia trabalho. No lugar do prédio, havia apenas um grande espaço vazio. Aquilo era muito estranho. Então, segui para meu bar favorito. Eu não tinha amigos; bebia sozinho, sempre que podia. Então, saindo pela porta estava a menina. Sua roupa possuía um padrão diferente. Era algo psicodélico, como um abajur de lava. Eu procurei me deixar invisível, me misturando a qualquer outro. E fiquei lá, por tanto tempo quanto pude.
   No almoço, a fome bateu. Saí, em direção a alguma lanchonete qualquer. Sua imagem não saía do meu campo de visão. Eu parecia não deixar de vê-la, por todo lugar. E havia um cintilar de sinos associado a sua presença, ou assim eu percebia. Parecia que era ela que andava atrás de mim, e não o contrário. Decidi deixar de procurá-la, mas não conseguia. Tentei almoçar, mas sua risada parecia ecoar em minha mente. As outras pessoas pareciam não notar, mas eu sabia que estava lá.
   Tentei ir ao lugar onde eu trabalhava, mais uma vez, e nada encontrei. Havia um novo prédio lá. Era uma loja de cosméticos, bem no primeiro andar. Em diante, acredito eu, era a sede da empresa. Tentei ir até o andar onde eu trabalhava, mas o acesso era restrito. Eu me perguntei o que havia de errado. Fui ao banco, tentar ver meu dinheiro. Acontece que, pela primeira vez, um milagre aconteceu. Eu tinha, então, dinheiro suficiente para uma vida toda.
   A essa hora, já era tarde e eu precisava ir pra casa, dormir. Ela apareceu, novamente, na minha realidade. Ela havia saído dos sonhos. Eles já não eram suficientes para sustentá-la. Onde ela pisava, parecia que o chão derretia. Quando ela se aproximou de mim, pude sentir o calor que irradiava de diversas cores, criando um arco-íris em sua aura.
   Pela manhã, eu acordei, novamente. Me senti aliviado que tudo fora apenas um sonho. Mas, quando olhei para o chão, havia marcas de queimado. Não estava muito derretido. Alguma coisa, realmente, aconteceu. Eu só não sabia o quê. Levantei-me e fui ao café da manhã. Tomei apenas iogurte de ameixas, pois me sentia enjoado.
   Segui para meu lugar normal de trabalho, mas ele ainda não estava lá. Eu me perguntava o que estaria acontecendo. Fui, então, ao banco, novamente, e aquele dinheiro ainda estava lá. Aliviei-me, por um lado, e preocupei-me, por outro. Fui comprar roupas. Eu sempre fui pobre e desprovido de condições financeiras suficientes para pagar luxos. Comprei até a hora do almoço.
   Segui ao restaurante mais confortável da cidade, uma lanchonete na rua principal, que ligava a cidade de um ponto ao outro. A garçonete era a menina. Tentei disfarçar, mas não consegui. Ela me olhou nos olhos com uma profundidade que poderia ver até minha alma. Seu uniforme era curto, mas profissional, com uma estampa de Glitter  em forma de estrela. Não pronunciei uma palavra sequer, apontando o que eu queria no cardápio. Ela também não falou nada. Durante toda a refeição, só havíamos nós na lanchonete. Nos entreolhávamos por suspiros e choro engolido. Quando terminei, pedi a conta com um gesto. Paguei no meu mais novo, e milionário, cartão.
   Segui, sem olhar pra trás, ao Museu. As pinturas que lá haviam eram divididas em duas categorias: objetivas e subjetivas. Fui à primeira, no passo que me senti alegre por ver tantos rostos sorridentes em momentos tão belos. Quando fui à segunda, me surpreendi ao ver a galeria completamente vazia. Não completamente. Ela estava lá, olhando uma pintura que mostrava uma mulher, com cabelos raspados, manchada de sangue, com um cálice no lugar da boca. Seus olhos estavam vendados e ela tampava os ouvidos, como se quisesse evitar ouvir algum grito de terror. Ficamos olhando a imagem por diversas horas, até que eu fui embora.
   Cheguei em casa cedo. Estava cansado e queria dormir. Depois de vários dias, consegui dormir normalmente. Durante o sono, me senti flutuando no vácuo. Não havia nada além de uma estrela, ao longe. Eu sabia que era uma estrela porque a reconhecia das enciclopédias que eu colecionava. Lá, o calor diminuiu. Uma sensação de calma tomou conta do meu coro, sem que eu soubesse o que acontecia.
   Antes que mais alguma coisa acontecesse, eu acordei. Eu ainda sentia frio, mas isso era porque a janela foi quebrada. Uma pedra estava no chão. Os dois fatos estavam conectados, eu tenho certeza. Fui tomar café da manhã, como todos os dias, no restaurante. Dessa vez, foi algo diferente. Um sanduíche, de queijo provolone e presunto, e leite achocolatado.
Decidi ir ao Departamento de Polícia, e denunciar a quebra da minha janela. Eles riram de mim. Disseram que, mais que provavelmente, era apenas um grupo de crianças provocando um trote. Enquanto eu ouvia risos, a menina passou por mim, com um uniforme, algemando um homem de meia-idade, e levando-o a uma cela. Sentei-me em um banco e aguardei até que minha queixa houvesse sido computada, o que demorou algum tempo.
   Então, fui almoçar naquela mesma lanchonete. A garçonete já não era a mesma. Até o uniforme, então, era diferente. Me senti menos tímido, ao passo que continuei sem falar nada. Apenas indiquei, no cardápio, o que eu queria. Comi de maneira lenta e dolorosa. Cada colherada daquela sopa me pesou mais que qualquer banquete da minha vida. A sobremesa foi um sorvete que não gostei. Abandonei na segunda colherada. Quando estava satisfeito, pedi a conta, sem falar qualquer coisa. Tentei pagar com o cartão, mas ele foi recusado. Procurei algum dinheiro na carteira e, por sorte, encontrei. Paguei, então saí.
   Entrei no banco e fui verificar minha conta. Aquele dinheiro, havia sumido. Não havia o menor vestígio dele. Procurei falar com o gerente do banco. Ele me mostrou os movimentos recentes da minha conta e não havia menor sinal que aquele dinheiro jamais havia sido meu. Primeiramente, eu fiquei louco. Então, eu percebi que não havia porque reclamar. Aquele dinheiro, realmente, nunca havia sido meu.
   Segui ao meu apartamento, onde tentei jantar e, então, dormir. Consegui, com algum custo. Pelo menos, eu consegui. Dormi calma e silenciosamente. Nada aconteceu. Nenhum sonho esquisito, tampouco agradável. Me vi, apenas, preso em um mundo de sombras, a parte da realidade.
   Ao acordar, meu corpo doía, mas a janela já não estava quebrada. Aquele não era meu quarto. Minha mãe estava ao meu lado, sentada e dormindo. Chamei seu nome e ela acordou, num sobressalto. Ela apertou um botão azul, que acionou a presença de uma enfermeira. Ela veio, checou o que havia de errado, mas nada demais. Aparentemente, eu havia acordado de algum sono profundo. Provavelmente, um coma. Acho que tudo não passou de um sonho.
   Mas, quem era a moça que tanto me perseguia?

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