domingo, 5 de maio de 2013

O teatro dos vampiros

As cortinas se abriram. Vermelhas e pesadas. Duas pessoas se fizeram necessárias para abri-las. Os atores estavam nas cochias. E, assim que as cortinas abriam, as luzes acenderam. Foi posto um foco no centro, onde um homem mais velho chegava, devagar. Ele pronunciava algumas palavras.

Michel Melamed, na minissérie "Dom Casmurro"
"Venho aqui, por intermédio do incentivo cultural, retratar esta pobre realidade. Eu, particularmente, não gosto de teatros. São lugares aterrorizantes. As pessoas são esquecidas no teatro. Os grandes já vivem para o cinema, onde o reconhecimento é pleno e absoluto. No teatro, são eternizados pela efemeridade da obra. E no cinema, são esquecidos pela possibilidade de assistir o mesmo filme. De novo. E de novo. Não estou criticando, veja bem, mas o que eu mais detesto é justo aquilo que me colocou no estrelato. E, agora, uma peça."

A plateia estava alvoroçada. Haviam crianças impacientes e bebês que, assim que o homem, com sua voz calma e doce, tinha parado de falar, começaram a chorar. É incrível a capacidade que algumas pessoas têm para serem ouvidas. E os músicos começaram a tocar uma marcha lenta e fúnebre. Mas, era tão suave que ninguém percebia seu fedor de morte. Pessoas começaram, então, a passar pelos corredores, com sachês de cheiro. Pinheiros. O teatro estava cheirando a pinheiros.

No palco, fez-se apresentar uma moça. Ela apareceu, de fininho. E, quando todos estavam concentrados no cheiro de pinheiro, se deram conta que ela estava ali. Estava vestida de maneira simples, mas começou a falar, tão rápido quanto apareceu.

"Olá", ela disse, enquanto sorria. A plateia não respondeu. Então, "OLÁ, eu disse", ela repetiu. Mas, de novo, ninguém respondeu. Só uma criança. Um menino que não tinha muito além dos cinco anos. "Oie", sua voz ecoou pelo teatro. Então, a moça procurou na plateia. "Quem disse isso pode vir aqui?", ela perguntou, ainda no foco do palco, mas se movendo para frente, ainda procurando. O menino, então, se desvencilhou dos braços de sua mãe e correu. Chegou rapidamente ao palco. A moça lhe pegou nos braços, então. Segurou no alto, para olhar direito. Mas, ele não era nada diferente de um outro menino de cinco anos. "Fique aqui", ela pediu, dando-lhe um beijo no rosto. O menino, corajoso, porém incrivelmente aterrorizado, obedeceu.

Uma mulher mais velha apareceu. Sua aparência não era das melhores. A maquiagem estava borrada e seus olhos já não podia perceber tanto quanto ela queria. Ela andava num passo rápido e apressado, como se não tivesse tempo a perder. Olhou o menino com desdém e lhe perguntou como era seu nome. "Armand", ele respondeu, suando frio. Ele estava com medo.

"Quem é a senhora?", ele perguntou. "Não está me reconhecendo, querido?", ela perguntou olhando fixamente para ele. "Não, senhora", ele disse, tremendo. "Não tenha medo, amorzinho. Eu não vim lhe fazer mal", ela pediu. "Não tenho medo de nada", ele disse, tentando ganhar confiança.

"O tempo surge, acontece e vai embora. Muito embora ele passe para alguns de nós, outros não tem o mesmo destino, seja física ou mentalmente. A efemeridade das coisas é um fato explorado nesta obra e, enquanto pudermos, o poeta que é o tempo tentará nos fazer ser grandes ou pequenos, anjos ou demônios. A grande intolerância daquilo que nos cerca é o escárnio da realidade, nos prendendo aos mínimos defeitos e nos fazendo esquecer daquilo que importa."

O menino olhava desconcertado para a senhora. Quando ela disse estas palavras, olhava diretamente para a plateia. O menino ainda estava com medo, mas não o demonstrava. A senhora o abraçou e, quando soltou, ele correu para as cochias. O foco de luz o seguiu todo o instante e permaneceu no lugar por onde ele saiu do palco.

Um outro homem apareceu, então, dali. Um mais velho, forte e viril. Possuía um bigode bem desenhado no rosto, dando a entender que era de verdade. Seu cabelo era escuro, como o do menino. O do menino era liso, mas o do homem era cacheado. Se aproximou, então, da senhora e lhe deu um abraço. E, então, um beijo. Seguiu com beijos do pescoço ao braço, até a mão. Largou-lhe, de repente e começou a proferir algumas palavras.

"A efemeridade, não é mesmo? O que ela é? Tudo o é? Quem sou eu? Sou, pois, aquele menino que estava por aqui. Enquanto eu estava distraído, um momento ou uma vida, se preferir, se passou e cá estava ela, mais velha que estou agora. Então, me vi sem chão. O tempo não havia passado para mim. Me vi sozinho. Então, decidi fugir. Fugir, sim, de toda esta realidade. Então, eu mudei. Eu me fiz mudar ou simplesmente aconteceu?"

Mas, a senhora ainda parecia velha demais para o rapaz. Ele era jovem e ela... bom, ela era mais velha, pelo menos vinte anos. Voltaram a ficar abraçados. Eles não possuíam química, mas ainda pareciam ter algum sentimento. Apareceu, então, uma outra moça. Ela era mais jovem que a senhora. De repente, o rapaz começou a olhar pra ela. A senhora pedia que ele olhasse pra ela, com gestos, mas ele não tirava os olhos da jovem moça.

"Vê? Ele não sabe quem sou eu mas, mesmo assim, a atenção dele está desviada. Por mais que ele tente, não consegue. Está fora de sintonia. Um relacionamento é igual um animal selvagem porque se chegar perto demais, ele pode te devorar. Mas, se for cultivado desde cedo, podem ser amigos pra sempre. Ele foi devorado. Vê como ele se distrai pela primeira coisa que apareceu? Ele está preso, como um zoológico."

De repente, quando a jovem moça parou de falar, o rapaz olhou a senhora e depois olhou a moça. Saiu do abraço mútuo e deu um outro abraço, unilateral. Conversou com a senhora, sobre algo. Então, deram um último beijo e se separaram. Ele foi, então, conversar com a jovem moça. Então, deram um beijo tímido. Olharam para os lados e se agarraram num abraço violento e sensual. A senhora caiu no chão e começou a chorar. E os jovens nem olhavam mais pra ela. Aparentemente, conforme ela fazia mais barulho, menos eles se importavam.

Uma sombra. Um capuz escuro e pesado passava pelo palco. Ele se aproximou, sem que notassem sua presença e segurou a senhora nos braços. Dali, a levou. Ela já não fazia barulho algum, mas seus olhos estavam brancos, abertos e sem vida. O casal jovem ainda se agarrava. Eles pareciam ter alguma química esquisita que não permitia que se separassem. Seguiram, então, até as cochias.

Por um momento, tudo ficou calmo. A plateia estava atônita. Então, um outro casal, mais velho, apareceu. Com eles, haviam três crianças, de idades variadas. Todos pareciam felizes. Estavam andando juntos, lado a lado, de mãos dadas. Mas, a mulher parou; não estava aguentando. Ela tentava se soltar, mas as tentativas não passavam disso. Então, conseguiu. O homem não soube o que falar. O grito morreu na garganta.

"Nada é para sempre. O amor aparece onde menos se espera, se desespera ao se desenvolver, e morre, quando não se procura. Nada é para sempre, muito embora tentemos contornar tal realidade. O que nos é de direito é sempre a vida. O amor, o perdão e a redenção são apenas mais regalias para podermos aproveita-la. Devemos sempre ver a auto-estima com olhos de diamante porque nunca se sabe quando ficaremos sozinhos."

Então, ela seguiu com as três crianças para as cochias. De lá, seguiram pelo corredor central do teatro, com o foco de luz sempre neles. E saíram, como se não houvesse mais ninguém que pudesse impedi-los. E talvez não houvesse. Não se sabe.

"A vida. Traiçoeira e pestilenta. É apenas mais um efeito colateral da morte. Queremos sempre ser notados pelo universo, mas o universo é quem quer ser notado por nós. Ele sempre dá seu jeitinho. Sempre consegue o que quer. O que será? Não sabemos nem o que nós queremos, quanto mais o que ele quer. A imortalidade é uma dádiva que ninguém além de seres animados podem conseguir."

Revelou-se que o homem abandonado era, na verdade, o homem do começo da peça. Então, ele se levantou. "Então, é verdade, não é? O teatro, por ser efêmero, sempre será lembrado por aqueles que participam dele. Por isso, é nada além de pura imaginação, o que fazemos aqui. Nada além de hipóteses. Mas, e se não forem apenas hipóteses?"

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