quinta-feira, 27 de março de 2014

Alívio ou dor?

Toda história, começa com seu próprio começa, seja um meio, seja um fim. essa, em particular, começa com a morte de um indivíduo. na jornada da vida, o fim foi o que ele menos esperava, embora fosse sua maior certeza.
O sangue em sua camisa secou rápido. hemofílico. o sangue não coagulou. assim, ele morreu de hemorragia. a faca ainda estava lá, em seu abdômen, como um símbolo. a morte vem para todos, mas chegou primeiro para ele.
O sorriso em seu rosto não denunciava os horrores que ele havia presenciado. mostrava apenas que seu último momento havia sido genuíno. provavelmente, nem sabia que a morte o atingira. os olhos fechados diziam isso.
Entre sussurros e sonhos cheios de alegria, ele se foi sem nem ao menos saber como eram os portões. chegou apressado. sem dizer olás ou distribuir simpatias. chegou logo ao seu destino. não quis saber de mais nada. nem precisava. seu paraíso o aguardava.
Na terra, porém, a trama se complicava. enquanto a morte do indivíduo, para ele, resultava na felicidade eterna, outros sofriam. seus pais, sua esposa, seus filhos, seus amigos. todos reagiam de uma forma diferente. cada uma possuía suas características especiais.
O telefone tocou. o sorriso secou tão rápido quanto havia surgido. a simpatia não é boba. uma lágrima escorreu. a notícia não era boa. nenhuma mãe devia passar por isso. enterrar um filho é o pior pesadelo de uma mãe. ela já havia enterrado o marido e, agora, o filho. sua família se encontrava desfalcada. largou o telefone. caiu. seu coração desacelerou. morreu.
Seu marido havia falecido alguns anos antes por algum acidente qualquer, infortúnio do destino, desatento da vida. num carro, sob influência, seu cérebro parou, depois de uma batida. o coração, então, seguiu o ritmo, cada vez mais lento. e parou. morreu.
A vida é uma consequência da morte. nem todas as coisas nascem, mas, com certeza, todas morrem. ninguém sabe ao certo o que acontece, mas quando tudo falha, não há nada que possa salvar. somente um milagre. e esses não são tão frequentes.
A esposa recebeu a segunda ligação. pediram-na que fosse identificar o corpo. desligou. parou um momento, sem voz, impassível. em sua cabeça, não se sabia o que passava. um turbilhão de sentimentos. palavras que tentavam escapar, morriam no meio do caminho, em meio a tantas divergências. por fim, uma palavra escapou de seus lábios. "até que enfim."
Nenhuma pessoa pode falar de outra sem que a conheça por completo. as pessoas mudam a todo o instante, inclusive em toda uma vida. ou, até mesmo, se mostram de uma maneira, para cada pessoa, por toda uma vida. possivelmente os parentes próximos, pais, irmãos e primos. mas somente os amigos são os que entendem os motivos.
Ele era uma dessas pessoas. enquanto vivo, mantinha uma rédea curta sobre sua esposa. enquanto ela não podia sair quando quisesse, seu filho homem não tinha horário para ficar em casa. era expulso sempre que possível para "se virar no mundo". algo que ele não encarava muito bem. mencionava como abandono.
Quando chegou ao quarto dos filhos, um casal, um rapaz e uma moça, se sentou na cama desta última e tentou parecer o mais triste possível, apesar de não ter uma atuação muito convincente. "seu pai está morto", ela sussurrou entre os dentes. exclamações de dúvida surgiram entre seus filhos, quando se entreolharam. "como?", perguntaram em uníssono. "isso é o que veremos logo mais à tarde", disse. e saiu sem olhar para trás, num passo acelerado.
Os filhos mantiveram o olhar preso, sem sentimento, sem palavras. o que eles sentiam era difícil descrever. era algo como alívio e decepção. ele não poderia mais controlar suas vidas, mas também nunca aprenderia com seus erros. sorriram, brevemente, mas voltaram aos seus afazeres.
Seus hematomas ainda eram visíveis sob as roupas brancas. sinal de pureza, seu pai dizia. homem algum gosta de mulher rodada, ele repetia mais do que ela gostaria. seja prendada para que homem algum te largue, ele ralhava sempre que ela se recusava a fazer comida. costure para que seu homem não procure tais serviços fora de casa, ele dizia em tom jocoso.
Suas palavras duras e insensíveis penetravam em seu coração como flechas envenenadas, ampliando, ainda mais, a antipatia que todos desenvolviam por ele. se lembrando de como ele estava morto, não podia deixar de soltar uma risadinha. esta vinha imbuída não de chacota, mas somente, e tão somente, de alívio.
Palavras não foram ditas. nenhuma. por tanto tempo que o silêncio se tornou incômodo. mas eles continuaram. tentavam esconder seus sorrisos, mas sabiam o que cada um pensava. parecia telepatia, mas era só a convivência.
Uma música começava, silenciosa, no outro lado da casa. de alguma forma, alguma coisa começou. nesse momento, as coisas que foram postas em andamento, até então, não possuíam importância; eram inimagináveis. mas, então, a música começou. e, com ela, tudo o mais se pos a engrenar.
Depois do almoço, os três se entreolharam e compartilharam uma exclamação silenciosa "merda!, a vovó". levantaram, foram aos seus banheiros pessoais respectivos, tomaram banhos e se puseram a caminhar em direção ao carro.
O caminho parecia diferente daquilo que eles se lembravam. embora tomassem a rota uma vez por semana, para os almoços dominicais, algo parecia suspeito. a música, calma e cheia de altos e baixos, tocava cada curva como um ponto de ancoragem que os prendia entre uma confusão do que sentiam, do que deveriam sentir e, mais importante, do que iriam mostrar à velha senhora.
Quando chegaram, na porta havia uma ambulância levando um corpo. e, na porta, uma vizinha, tão idosa quanto. assustada. chorando. segurando um terço. nessas horas, é a fé que dá força. ou, pelo menos, isso era o que se dizia. naquela época. há muito.
Os três se aproximaram devagar. a mãe não perguntou quem era. não precisava. a suposição era correta. a vizinha olhava com olhos desoladores enquanto balançava com a cabeça. "ela era tão jovem", exclamava em murmúrios. em silêncio, a nora pensou negativamente. ela não era jovem. havia nascido velha. e reclamona. ninguém podia dizer o contrário. a não ser, é claro, para ser gentil.
As crianças desataram em lágrimas. na hora, não sabiam se eram verdadeiras ou falsas. mas acredito que eles amavam, verdadeiramente, a avó. ela guardava seus rancores apenas para seu filho e a esposa. nunca descontava nos netos. ela os amava demais para isso. o paramédico soltou rápido e conciso.
"Morreu do coração. não sabemos ao certo como foi isso? ela recebeu alguma notícia difícil recentemente? ela não parecia estar doente pra isso. ela tinha quantos anos? o que vocês são dela, exatamente? parentes, amigos, alguma coisa? qual seu propósito?"
"Bom, eu sou, quero dizer, era casada com seu filho. coincidentemente, me foi notificada hoje, sua morte. talvez tenha sido isso. o policial me disse que já havia ligado para ela, tendo em vista que foi o primeiro número que apareceu em sua secretária eletrônica. ela não levou a notícia muito bem, creio eu. levou-a junto para o túmulo."
E levaram-na sem delongas. as crianças, incrédulas, pensaram em se aproximar do corpo, mas decidiram que era melhor não. talvez fosse melhor assim. eles poderiam vê-la em melhor estado no funeral. embora eles não soubessem, uma expressão de surpresa e tristeza se projetava em seu rosto, o que não lhes faria bem.
A nora, porém, não conseguia esconder seu sorriso. impiedosa, pensou sem dizer, que "foi tarde" e que ela "não recebeu além do que merecia". ficou feliz, porém, que seus filhos não tenham visto tal sorriso. quando eles a olharam, ela já estava impassível. nenhuma farpa de dor se mostrava. tampouco de alegria.
Pouco a pouco, os três semblantes se reorganizaram ao que eram comuns. entretanto, a mãe forçava algo que os dois meninos não entendiam. seu alívio era evidente. até demais. dois coelhos com uma cajadada só. era bom demais para ser verdade. ela não podia acreditar. assim, os sorrisos que pulavam de seu rosto, eram breves, mas demonstravam coisas até demais. ela preferia esconde-los.
Quando eles se casaram, se sentiam apaixonados. ele, pelo menos, sabia que não ia durar muito. ela, tão boba, acreditava no "para sempre". quando ela engravidou, viu um modo de segura-lo. mas ele era inveterado. a vida boêmia era como um vício que lhe sobia às narinas e inebriava a alma.
Ele piorou com os anos. foi ficando mais retraído. as palavras que trocava em casa eram duras. não traziam paz. não acalmavam. faziam com que cada um deles se sentisse mal. e não se importava com isso. ao contrário, ficava feliz. era sinal de que estava "desempenhando suas funções". algumas de suas mais famosas frases:
- Mulher tem que ficar na cozinha, onde é mais útil.
- Homem tem que saber se criar no mundo, não pode depender de mamãe e papai.
- Tudo o que eu conquistei, foi sozinho, sem mulher no meu encalço me perturbando.
- Mulher que é mulher sabe conquistar homem. De que adianta uma mulher que não sabe foder?
- Homem que é homem conquista mulher com classe. É tarefa dela aprender. E do homem é ensinar, seja quais forem seus métodos.
Isso se resumia num espiral de preconceitos e crenças infundadas que a mulher deve ser submissa ao homem, como sempre sua mãe havia lhe ensinado. um mar de ideologias do século passado que se encontrava prevista como crime na lei atual. mas, para eles, eram apenas os costumes. e, como tal, deviam ser passados de pai para filho.
O caminho se encontrava ainda mais estranho na direção do necrotério. a música, doce, possuía uma melodia melancólica e nostálgica, que fez com que os três direcionassem seus pensamentos ao presente futuro. a vida se tornaria melhor. e todas as coisas seriam o que deveriam ser.
Os ventos do passado e do futuro se cruzaram em meio a tantas ideias que os três ficaram sem palavras. ao que parece, seu pai havia sofrido um golpe de faca. foi falecido, também, do coração. o sangue jorrou mais rápido, devido aos fortes batimentos enquanto participava de um clímax. não, ele não estava sozinho. ele "participou" do clímax. precisa de dois pra dançar um bom tango.
Se entreolharam tantas vezes quanto possíveis. reações de confusão e vergonha se misturavam entre sorrisos de alívio e contentamento. não no necrotério, porém. na frente dos outros, eles não demonstravam nada além de tristeza. era o que devia ser feito.
Só quem convive, sabe os terrores que se passa, entre uma palavra e outra, uma reação desastrosa, uma briga, uma discussão. são esses e outros momentos que geram certa tensão entre uma família.
Ninguém sabe o quanto uma mãe sofre quando seu filho morre.
Ninguém sabe o que uma esposa sente quando seu marido abusivo morre. Alívio ou dor? Síndrome de Estocolmo?
Ninguém sabe o que uma filha sofre quando seu pai abusivo morre. primeiro, acontece a dor. afinal, ele é a única coisa que ela conhece. seus ensinamentos são como leis e devem ser seguidos à risca. depois, vem o alívio. poder ser quem realmente é.
Ninguém sabe o que um filho sente quando seu pai abusivo morre do jeito que sempre viveu: desrespeitando a si mesmo e sua família. não há outro sentimento que não alívio. apesar de nunca ter conhecido outro pai, ele sabia que não devia ser assim. ninguém deve sofrer o que ele sofreu.
Ninguém sabe o que o pai sofreu quando morreu. ele achou que ia ao paraíso e que nada no mundo poderia fazê-lo mais feliz. estava errado. o inferno é reservado a muitos e, infelizmente, ele não era nada além de humano. 
Os instintos mais básicos dos seres humanos são egoístas e patologicamente desrespeitosos. a sociedade tenta ameniza-los pela criminalização de várias coisas. mas acontece que, infelizmente, a cultura de um povo não pode ser interrompida pela escritura num papel que não é seguida à risca pelas autoridades responsáveis.
O mundo acontece, muda e evolui, mas as pessoas são frutos de suas próprias mentes e, assim, seguem em uma linha de raciocínio hereditária que se faz de desentendida quando, em um primeiro plano, são o certo, mas não são nada além de uma exclusão social compulsória ligada a fatos biológicos sem qualquer estrutura lógica.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Minhas [des]ocupações mais valorosas...