domingo, 12 de janeiro de 2014

A justiça é cega, mas ainda pode te dar uma rasteira

Quando você imagina que nada pode piorar, é quando piora. A vida começa para todo mundo. Para mim, foi aos cinco anos. Foi quando tive consciência das coisas. Não me lembro de nada antes disso. Alguns flashes, provavelmente. Minha mãe, uma mulher negra, trabalhava em uma casa, como empregada doméstica. Meu pai também trabalhava, então não tinha condições de cuidar de mim, em casa.Eu sempre ia com minha mãe para o trabalho. Lá, tinha uma criança que eu gostava de brincar. Era o filho da dona. Ele era diferente de mim. Eu era tímido e introspectivo. Branco, de olhos e cabelos claros, e rico, claro. Ele era altivo, esperto, falante e muito extrovertido. Em outras palavras, um safado. Ele fazia as coisas erradas e botava a culpa em mim. Sujava o chão, quebrava copos etc. Minha mãe não se importava porque sabia que era ele quem fazia isso tudo.

Uma vez, ela o puxou para conversar. Ela perguntou por que ele fazia isso. Um homem de verdade assume seus erros, afinal. Ele disse que tinha vergonha e medo que sua mãe lhe desse alguma punição. Minha mãe, então, deu-lhe um dos melhores conselhos que já ouvi. "Se não fizer nada errado, não vai ter que pedir desculpas, filho", ela disse com um sorriso caloroso. Ele também sorriu, agradeceu e deu-lhe um abraço. Ele disse para ela não se preocupar que ele haveria de dar um jeito em tudo.

No dia seguinte, então, estávamos brincando de esconder e era a minha vez de contar. Ele correu rapidamente pro quarto da mãe. Eu ouvi o ruído das escadas. Corri atrás dele. Quando cheguei lá, vi ele vomitando num vestido da mãe que estava em cima da cama. Quando vi, a mãe dele já estava ali, com a minha mãe. Parece que elas adivinham quando acontece algo de ruim. Quando a mãe dele perguntou quem havia vomitado no vestido que ela ia usar num jantar que ia ter naquela noite, o filho dela apontou pra mim, sem dizer uma palavra. Ela ficou com tanta raiva que pediu a nós dois que saíssemos do quarto para ter uma conversinha com a minha mãe. Ela ficou branca. Parecia que passava mal. A contragosto, saímos. Duas crianças. Eu não entendia o que estava acontecendo. Ele, sim. Ele dava um sorrisinho sem vergonha, amarelo. Depois de muitos anos eu entendi o sorriso. Foi de propósito. Ele não queria que minha mãe trabalhasse mais lá. Ele realmente ia dar um jeito. Ele fez com que ela fosse demitida. Nossa família, muito pobre, dependia desse emprego. Logo ela que lá permaneceu tantos anos foi demitida sem nem uma piscadela de olhos.

O pior foram as consequências imediatas. De repente, minha mãe não conseguia arranjar emprego. O menino que ela criou por cinco anos fez com que ela ficasse com uma fama tão ruim que ninguém queria contratá-la. Todavia, depois de vários meses, uma escola que abria perto da nossa casa precisava de uma servente e uma cozinheira. Duas das funções que minha mãe melhor exercia. Lá, ela foi procurar emprego e conseguiu. O diretor, muito generoso, exigiu que uma das condições para sua contratação foi que eu, seu filho, deveria estudar lá, com uma bolsa. Naturalmente, ela aceitou. A boa vontade do diretor a estimulou de tal maneira que dentro de alguns anos ela se tornou coordenadora. Era amada por todos os alunos, com poucas restrições. Era rígida com um coração de manteiga. Sabia desempenhar a função de tal maneira que a escola logo se tornou uma das melhores da região.

"A educação é o alicerce do sucesso, mas somente com o trabalho duro que ele se ergue", minha mãe começou a me dizer. Eu não me fiz de desentendido. Comecei a trabalhar cada vez mais. Dentro e fora de casa. Estudava dia e noite. Comecei com um emprego de vendedor, mas logo ascendi a gerente da loja. Nesse dia, meu pai fez um jantar para mim, especial. O orgulho que sentiam de mim parecia fogo em seus olhos. Consegui uma bolsa na melhor faculdade da região. Não me esqueci do caso daquela minha infância.  Eu ia ajudar todas as pessoas que necessitassem.  Todos os injustiçados e perdidos. Decidi ser "doutor das leis".

Passei por toda a faculdade distribuindo simpatia. Não deixava de me destacar, dia após dia. Quando terminei, fui logo contratado por um grande escritório. Não havia perdido aquelas qualidades que tanto possuía quando criança, mas as havia aprimorado de tal forma que posso dizer que me reinventei. Não era mais introspectivo, mas, sim, reservado. Gentileza, a palavra que é carro chefe da vida, era minha qualidade mais marcante.  Eu trabalhava ainda mais, dia e noite. Participava de tantos casos "pro bono" que minha firma estava a ponto de me demitir. Afinal, eu não gerava receita. Então, fiz um acordo. Fui obrigado a fazê-lo. As pessoas, em sua maioria, ainda teriam que me pagar. Mas, poderiam escolher até métodos menos convencionais. Poderiam pagar em posses, etc. Dessa maneira, não precisariam de se arriscar tanto, financeiramente.

Tudo passa, tudo voa. Minha mãe, já idosa, veio a falecer com problemas no coração. Ela já não mais trabalhava, não tinha preocupações. Mesmo assim, chegou sua hora. Em seu funeral, não foram muitos a comparecer, mas os que foram eram peças de ouro, na maioria, antigos funcionários da escola e amigos de papai; ela nunca foi de muitos amigos. Qualidade antes de qualidade, diz o ditado. Minha mãe sempre me dizia: "faça o bem independentemente de quem, mas não espere nada em troca"; meu pai, curiosamente, faleceu três meses depois. Ele, sim, era um homem orgulhoso. Sentia uma felicidade tremenda de fazer coisas pelos outros. Não me espantei quando tantos apareceram no seu funeral. Não podemos esperar nada em troca, mas se você souber dançar corretamente, acredite que, um dia, tudo será pago.

Eu tive certeza disso quando uma tarde ensolarada de verão, eis que me surge à porta, um homem gordo, careca, amarelado, fedorento. Veio até mim com lágrimas nos olhos, implorando por ajuda. Eu não sabia quem ele era, mas algo em sua fisionomia não me era estranha.  Perguntei-lhe o que havia de errado. Ele me disse que fora demitido por ser gordo. Seu visual não atraía clientes. Eu perguntei seu nome. Fiquei em choque. Era ele, afinal, o mesmo menino que cresceu comigo e, então, submeteu minha família a um longo período de necessidade. Ele não me reconheceu, ou pelo menos, era o que parecia. Levei seu caso à corte e vencemos. Ganhou uma bela indenização. Decidiu me pagar vinte por cento de todo esse dinheiro, fora os honorários.

Agradeceu-me e pediu perdão. Quando perguntei o porquê, ele disse que sabia quem eu era e tudo o que ele havia feito era errado. Saímos para jantar, rimos muito e trocamos várias experiências de vida. Eu descobri que sua família havia falido em 1929, como tantas outras. Eles haviam perdido tudo. Ele, que já não gostava de estudar, decidiu largar da escola para arranjar um emprego. E, assim permaneceu por tantos anos, estagnado numa posição de vendedor. Sem nem ao menos um diploma de administração para subir na carreira. Eu não posso mentir. Fiquei feliz quando soube disso. Sua vida era fácil, quando éramos crianças, mas logo piorou. Enquanto que a minha só melhorou. Dois dias depois de me pagar, a decadência foi ainda maior: ele infartou com uma prostituta no motel mais sujo da cidade e faleceu. A justiça tarda, mas não falha.

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