quinta-feira, 19 de julho de 2012

Uma vida, apenas...

  Depois da explosão da cocaína, em 1980, eu decidi entrar no ramo. Não soube jamais como contar aos meus pais. Felizmente, meus ganhos foram bons o suficiente para sair de casa sem que eles soubessem dos meus negócios. Eu comecei comprando atacado. Tinha um armazém que eu dividia com um amigo, traficante de maconha. Os negócios despontaram rápido. As modelos e os estudantes de faculdade sentiam "fome" e o meu produto era dos bons.
  Esse meu amigo, morreu de desgosto. Não conseguia arranjar trabalho e logo tirou a própria vida. Ele podia trabalhar comigo, eu sempre lhe dizia, mas, ele era orgulhoso demais; dizia que seria nepotismo porque, embora não fôssemos parentes, éramos amigos de infância. Preferiu tomar o partido do Senhor, do outro lado. A maconha, tristemente, ficou obsoleta. Não servia para os adolescentes, em sua maioria, que eram partidárias do modelo capitalista e estavam estudando cada vez mais e relaxando, cada vez menos.
  Eu dizia a mim mesmo que não ia deixar os negócios tomarem conta da minha mente. Eu dizia que eu não ia usar, pois, sabia dos efeitos colaterais. Mas, eu me deixei levar. Eu comecei básico; usava 1 vez por mês, para "brindar" os negócios. Depois de dois meses, comecei a sentir vontades, o que, como pode perceber, não foi muito bom para os negócios. Eu comecei a usar todo dia, 3 vezes por dia, como se fossem refeições. Eu o fazia na companhia das jovens modelos que usavam de graça, em troca dos favores sexuais. Algumas era menores de idade, mas, eu nunca me importei com isso. Elas me viam como um salvador; o alguém que as tirava da monotonia da vida comum. Elas eram, em sua maioria, fugidas de casa.
  Um dia, eu andava feliz pela rua. As pessoas não me davam importância. Eu gostava de ser um zé ninguém, no meio do mundo. As pessoas não sabiam que eu era um dos reis da cocaína da cidade. O centro da cidade era grande o suficiente para que ninguém percebesse meus modos, mais refinados que os da maioria. Neste dia em particular, eu tinha fechado um grande negócio. Eu tinha fechado negócio com o farmacêutico da Rua X. Ele era meu cliente há alguns anos, desde quando eu era sócio do tráfico de maconha. Mas, eu mudei e o negócio dele também. Ambos os nossos negócios começaram a se expandir. O meu se diversificou, cada vez mais. E, pela idade, ele já não aguentava mais trabalhar tanto. Iniciou o filho adolescente nos negócios, o que me beneficiou bastante, porque o garoto se tornou um de meus melhores clientes e vendedores, simultâneamente.
  Uma cliente da farmácia da Rua X era a senhorita W, uma jovem aspirante a médica, que passava horas estudando e, assim, precisava de um "remédio" potente. Foi indicado a ela, que viesse à mim, para que eu, um psiquiátra, pudesse ajudá-la em quaisquer remédios ela quisesse. Isto não era verdade, afinal. Eu tenho, sim, um diploma em medicina e, subsequentemente, sou especialista em psiquiatria. Eu não distribuía "remédio" sem um bom motivo. Ainda mais, para jovens estudantes. Eu gostava de conhecer os meus clientes. Era assim que eu os mantinha na linha por tempo suficiente e, com qualidade. Acontece que, em nossa sessão, vi uma grande cliente. Ela não tinha muito dinheiro, mas, o suficiente para estudar. Ela lhe parecia sã o suficiente para receber quanto quisesse. Ele tinha razão, ela estava muito bem. Ela não abusava das drogas, como suas clientes. Ela as usava somente para estudo.
  A família da senhorita W foi morta em um tiroteio de gangues. Eles foram mortos por traficantes de drogas, anos atrás. Seus corpos nunca foram encontrados, mas, a polícia suspeitava que eles apenas estavam no lugar errado, na hora errada. Ela nunca soube a causa real da morte, e, na verdade, nunca se importou porque era pequena demais para se lembrar. Foi criada pelas tias, um casal encantador de lésbicas, que se casara em uma cerimonia pouco convencional e quase pagã.
  Ela foi, sinceramente, a melhor cliente que já tive. Não atrasava os pagamentos, nem procurava pechinchar. Ela foi, realmente, uma cliente modelo. Ainda mais, ao término da faculdade, nunca mais me procurou, nem aos meus serviços. Ela me procurou, sim, para mais sessões porque, dizia ela, que eu era excelente psiquiatra; eu a entendia e lhe ajudava, de modos que os outros apenas falhavam. Eu já era bastante rico, naqueles dias. Ela também havia adquirido uma pequena fortuna, invejável a seu modo.
  Nossas sessões evoluíam dos dois lados. Eu a ajudava com sua vida e ela, com a minha. Eu era um homem de negócios, mas, virtualmente, não tinha vida social. Ela foi minha amante e confidente, ao passo de que, espero eu, fui o mesmo para ela. Nossa relação não saiu da cama. Ninguém poderia jamais dizer que nos vira jantando, ou coisa do gênero, em lugares públicos. Ela chegava em minha casa à noite e só saía no outro dia, pela manhã, sem mais delongas. Nós comíamos juntos, sim, mas com alimentos que eu encomendava de restaurantes. Assim, nossas refeições eram bastante ricas, sendo que, nelas, meu amor por ela crescia, cada vez mais. Nossa vida não passava de intimidades que, alegremente, cresciam a cada dia que passava. Ela me contou como ela havia jurado que jamais se casaria de forma convencional, homenageando às tias que, tão honestamente, a haviam criado, com amor e dedicação, sem um pedaço de papel, dizendo se elas se amavam.
  Um dia, inesperadamente, ela apareceu morta, em sua sala de trabalho. Todo seu sangue havia sido drenado e seu corpo mostrava, marcado com metal quente, a borboleta negra. Esse era, infelizmente, o símbolo da família rival à minha "companhia". Ela não precisava ter morrido. Ela era inocente, afinal. Ela não era uma de nós, deixava bem claro. Ela não participava disso, eles sabiam, mas, decidiram machucar a quem eu amava. Eu amava o modo como só nós precisávamos disso, a sociedade não interfiria e as coisas tomava um curso natural. Eu...
  Eu fiz o que eles queriam. Larguei daquela vida. Vida maldita onde as pessoas morrem o tempo todo. Eu vendi tudo e doei pra uma clínica de reabilitação. Vivo como morador de rua, atualmente. Não suporto entrar em uma casa, dormir em uma cama e trabalhar, porque tudo me lembra de como ela fazia todas essas coisas e de nada adiantou. Ela partiu, independente de tudo o que fazia.
  Não entendo como as pessoas conseguem viver daquele jeito, sujo e doentio, abusando do próprio corpo, se "exaltando". Eu me desintoxiquei há alguns anos, quando percebi o mal que fazia ao meu nariz, em primeiro lugar. Minha cocaína era misturada com gesso, pra aumentar o produto e diminuir a concentração, fazendo o cliente sempre querer mais e mais. Não é um fato desconhecido pra quem não trabalha nessa indústria. Qualquer idiota poderia saber, mas, os clientes fazem questão de não perceber e se matar, pouco a pouco, mais e mais, com nojo da vida que lhe foi dada. Não sei se foi algum deus ou Senhor que faz isso, mas, posso ter certeza que vale a pena. A senhorita W me mostrou isso. Ela me mostrou que a diversão de uma vida, só depende da pessoa com quem você compartilha.

Um comentário:

  1. Às vezes, o pensamento é doença.
    Às vezes, o que cura não mata.

    Boas almas "desentoxicam".
    Texto legal. ^^

    bjo

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