quinta-feira, 10 de julho de 2014

Distâncias imaginárias

Ele não tinha nome, mas ninguém tinha. Ninguém mais sabia de nada. O conhecimento humano já não era mais nada além de uma sombra. O menino não tinha idade. Não sabia os números. Sentava sozinho e era como ficava o dia todo, todos os dias.

Dormia de olhos abertos. Acordava sem perceber que havia dormido. E, nas olheiras, denunciava um sono muito maior do que o que sentia. Dentro de si, carregava mais lembranças do que gostaria de dizer. Mas não dizia nada. Tinha medo de fechar os olhos, de falar, do que poderia escapar.

Era levado, cada vez mais, ao Distante. Um mundo sem cor, transparente, bioluminescente. Lá, era assombrado por todo tipo de monstros. Em noites normais, ele podia se esconder nos livros, mas frequentemente ele era perseguido.

Os demônios das pessoas são pessoais e intransferíveis. E ele sabia disso bem até demais. Quando a noite chegava e os gritos começavam, seus pais não sabiam mais o que fazer. Médico depois de médico, nada resolvia. O terror noturno não tinha nome. Era só isso.

E, durante o dia, quando os gritos cessavam, as sombras se tornavam igualmente assustadoras. Fixava os olhos em livros sobre histórias igualmente aterrorizantes, procurando uma solução, mas nenhuma história descrevia o que ele estava sentindo.

Ele já não conseguia mais olhar nos olhos de ninguém. Numa rede de mentiras monossilábicas muito bem colocadas, ele conseguia se manter fora do radar de quem o importunasse. Mas isso não duraria para sempre.

Foi então que um dia qualquer, encontrou um tomo diferente. Sem nome e surrado, o livro parecia chama-lo. Em suas páginas, pouco conseguia ler. Páginas manchadas e escuras, cheias de mofo.

Era o livro da noite mais escura, a palavra dos mudos, o chamado dos desavisados. Era um livro mais antigo que a própria vida, quando ela era contada apenas através de sussurros em cavernas escuras e úmidas.

Desenvolvido ao longo das eras pelas gerações, o livro continha informações sobre os dois mundos, as criaturas que neles habitavam sobre ele mesmo. Coisas que seus pais nunca haviam lhe contado ali surgiam.

Uma mitologia sem fim se abria aos olhos do menino que, preso no Distante, se encontrava aqui, longe de todos os seus demônios. Cada ferida em seu corpo se fechava num encanto de proteção, cuja pronúncia saía como música pelos lábios.

Sua herança nunca fora mais do que umas consultas médicas para resolver acerca dos demônios invisíveis que o cercavam e o atormentavam. Mas agora ele via muito mais do que sempre sonhou.

Entendia as palavras como se sempre as tivesse ouvido, em sussurros. Nomes, fatos, coisas, rimas e muito mais. O livro continha o mundo em suas centenas de páginas. E, em cada página, ele se deliciava cada vez mais. Se encontrava, pela primeira vez em muito tempo, compenetrado.

Seu humor passava, então, por uma transformação silenciosa e sutil. Seu corpo, tenso e rijo, se encontrava cada vez mais relaxado. E, pela primeira vez em muito tempo, se assustou com uma risada que não era do seu feitio.

Lia, numa página amarelada, uma história sobre um casal, cuja maldição era o famoso Feitiço de Áquila. Uma maldição tão antiga quanto o próprio tempo. Era a irônica história de um casal, com uma paixão legendária, que nunca poderia se encontrar. Durante a noite, ele se transformava em lobo; e, durante o dia, ela num falcão. Surgia, sem explicação em cada geração e só podia ser quebrado durante um eclipse. Riu, não por pensar no sofrimento do casal, mas na ironia do seu amor. Nunca juntos, nem separados.

Ficou entretido nas páginas do livro até o amanhecer quando, sem perceber, foi puxado, junto ao livro, para fora daquele plano. Se sentia seguro perto dele. Colocou-o numa prateleira baixa, de fácil acesso.

Não sabia o que fazer a seguir. Depois de ler sobre o Distante, sabia que ele não poderia alcança-lo ali. Não havia criaturas com poder suficiente para atravessar entre as dimensões. O gasto de energia era muito intenso com a ruptura das pequenas cordas que compunham o tecido da realidade.

Quando seus pais entraram no cômodo para lhe deixar o café-da-manhã, ele já não esquivava dos olhares. Procurou ver algum fiapo de esperança em seus olhos. Retribuíram-lhe com profundos olhos inquisidores. E, num breve instante, a comunicação foi intensa.

Procurou abraça-los sem qualquer pretensão. Sabia que eles nunca puderam ajuda-lo porque não entendiam da sua condição. Mais seguro de si, ele percebeu que eles fizeram tudo o que podiam. Estava fora do seu alcance, mas a ajuda que providenciaram salvou-lhe a vida.

Isolando-o naquela casa, eles impediram que ele ficasse preso no Distante permanentemente, criando um sistema seguro de ancoragem; um lugar para correr quando tudo parecesse mais escuro. E, então, ele havia encontrado um totem. Um objeto de conhecimento pleno com um efeito borboleta.

O livro, em sumo, era a história de um imortal. Alguém fadado a sofrer durante toda a eternidade. Codinome: o Arquivista. Seu objetivo era percorrer a existência documentando tudo que fugisse do normativo, rotineiro.

A humanidade possuía seus historiadores, que procuravam, por meio de documentos, acerca de fatos e pessoas. Outras fontes poderiam ser levadas em consideração, mas os documentos, por algum motivo, possuíam alto teor de credibilidade.

Num primeiro instante, pareceu bom demais para ser verdade. Depois, quando começou a se estabilizar, olhou-se no espelho e não viu muito. Olhou para as mãos e notou algo diferente. Sentia-se diferente. Respirou fundo, fechou os olhos. Procurou, dentro de si, entender o que acontecia.

Quando abriu os olhos e, novamente, olhou-se no espelho viu algo muito diferente do que estava acostumado. Era num sopro de vida que ele se via sabendo muito mais que devia. E, sem se esquecer do que havia tanto sonhado, acordou para lembrar do que, de fato, vivera.

A verdade é que a vida acontece de muitas formas, em muitos corpos, de muitas maneiras. E nenhum homem crescido sabe como vive um menino, assim como o mesmo menino só algum dia mais tarde poderá saber o que é ser adulto. Os ciclos intermináveis da existência não são mais que versões da mesma história.

Uma mentira não é mais que uma distorção da verdade imediata, que percorre a si mesma numa linha do tempo alternativa. A ilusão não é mais que a verdade escondida. Assim, percebe-se que as três coisas são o mesmo, uma realidade repartida entre quem escuta, quem enxerga e quem participou.

A simplicidade humana, mesmo a infantil, não pode aguentar mais do que foi projetada para tal. Embora a imaginação seja um artifício da fuga existencial da mente, é impossível determinar com exatidão se o corpo humano poderia aguentar uma realidade além do simples.

E o mito se desconstrói a partir de outras ideias que surgem com o tempo, para substituí-lo. A humanidade não prevê o passado, mas parece sonhar com o futuro. É o mais natural da sua mentalidade.

Procurar o impossível e, mesmo assim, abomina-lo.
Cada moeda possui dois lados e um é desconhecido pelo outro. Mas o centro conhece cada ponto da moeda. Desde o raio até um ponto isolado no comprimento. Cada corda não é mais que um loop na sua feitoria, assim como cada coisa, em sua respectiva realidade, não é mais do que deve ser.


O comportamento das coisas é afetado por si mesmo numa onda estática irreversível e cíclica. Chama-se destino por desconhecer uma palavra melhor para aplicar. A sina das coisas, o destino das portas. Aonde se vai quando se precisa ir. O caminho que se deve tomar quando não se pode ficar parado. O que acontece quando se faz alguma coisa e a respectiva conclusão.

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