Ele não tinha nome, mas ninguém tinha. Ninguém
mais sabia de nada. O conhecimento humano já não era mais nada além de uma
sombra. O menino não tinha idade. Não sabia os números. Sentava sozinho e era
como ficava o dia todo, todos os dias.
Dormia de olhos abertos. Acordava sem perceber
que havia dormido. E, nas olheiras, denunciava um sono muito maior do que o que
sentia. Dentro de si, carregava mais lembranças do que gostaria de dizer. Mas
não dizia nada. Tinha medo de fechar os olhos, de falar, do que poderia
escapar.
Era levado, cada vez mais, ao Distante. Um
mundo sem cor, transparente, bioluminescente. Lá, era assombrado por todo tipo
de monstros. Em noites normais, ele podia se esconder nos livros, mas
frequentemente ele era perseguido.
Os demônios das pessoas são pessoais e
intransferíveis. E ele sabia disso bem até demais. Quando a noite chegava e os
gritos começavam, seus pais não sabiam mais o que fazer. Médico depois de
médico, nada resolvia. O terror noturno não tinha nome. Era só isso.
E, durante o dia, quando os gritos cessavam,
as sombras se tornavam igualmente assustadoras. Fixava os olhos em livros sobre
histórias igualmente aterrorizantes, procurando uma solução, mas nenhuma
história descrevia o que ele estava sentindo.
Ele já não conseguia mais olhar nos olhos de
ninguém. Numa rede de mentiras monossilábicas muito bem colocadas, ele
conseguia se manter fora do radar de quem o importunasse. Mas isso não duraria
para sempre.
Foi então que um dia qualquer, encontrou um
tomo diferente. Sem nome e surrado, o livro parecia chama-lo. Em suas páginas,
pouco conseguia ler. Páginas manchadas e escuras, cheias de mofo.
Era o livro da noite mais escura, a palavra
dos mudos, o chamado dos desavisados. Era um livro mais antigo que a própria vida,
quando ela era contada apenas através de sussurros em cavernas escuras e
úmidas.
Desenvolvido ao longo das eras pelas gerações,
o livro continha informações sobre os dois mundos, as criaturas que neles
habitavam sobre ele mesmo. Coisas que seus pais nunca haviam lhe contado ali
surgiam.
Uma mitologia sem fim se abria aos olhos do
menino que, preso no Distante, se encontrava aqui, longe de todos os seus
demônios. Cada ferida em seu corpo se fechava num encanto de proteção, cuja
pronúncia saía como música pelos lábios.
Sua herança nunca fora mais do que umas
consultas médicas para resolver acerca dos demônios invisíveis que o cercavam e
o atormentavam. Mas agora ele via muito mais do que sempre sonhou.
Entendia as palavras como se sempre as tivesse
ouvido, em sussurros. Nomes, fatos, coisas, rimas e muito mais. O livro
continha o mundo em suas centenas de páginas. E, em cada página, ele se
deliciava cada vez mais. Se encontrava, pela primeira vez em muito tempo,
compenetrado.
Seu humor passava, então, por uma
transformação silenciosa e sutil. Seu corpo, tenso e rijo, se encontrava cada
vez mais relaxado. E, pela primeira vez em muito tempo, se assustou com uma
risada que não era do seu feitio.
Lia, numa página amarelada, uma história sobre
um casal, cuja maldição era o famoso Feitiço de Áquila. Uma maldição tão antiga
quanto o próprio tempo. Era a irônica história de um casal, com uma paixão
legendária, que nunca poderia se encontrar. Durante a noite, ele se
transformava em lobo; e, durante o dia, ela num falcão. Surgia, sem explicação
em cada geração e só podia ser quebrado durante um eclipse. Riu, não por pensar no
sofrimento do casal, mas na ironia do seu amor. Nunca juntos, nem separados.
Ficou entretido nas páginas do livro até o
amanhecer quando, sem perceber, foi puxado, junto ao livro, para fora daquele
plano. Se sentia seguro perto dele. Colocou-o numa prateleira baixa, de fácil
acesso.
Não sabia o que fazer a seguir. Depois de ler
sobre o Distante, sabia que ele não poderia alcança-lo ali. Não havia criaturas
com poder suficiente para atravessar entre as dimensões. O gasto de energia era
muito intenso com a ruptura das pequenas cordas que compunham o tecido da
realidade.
Quando seus pais entraram no cômodo para lhe
deixar o café-da-manhã, ele já não esquivava dos olhares. Procurou ver algum
fiapo de esperança em seus olhos. Retribuíram-lhe com profundos olhos
inquisidores. E, num breve instante, a comunicação foi intensa.
Procurou abraça-los sem qualquer pretensão.
Sabia que eles nunca puderam ajuda-lo porque não entendiam da sua condição.
Mais seguro de si, ele percebeu que eles fizeram tudo o que podiam. Estava fora
do seu alcance, mas a ajuda que providenciaram salvou-lhe a vida.
Isolando-o naquela casa, eles impediram que
ele ficasse preso no Distante permanentemente, criando um sistema seguro de
ancoragem; um lugar para correr quando tudo parecesse mais escuro. E, então,
ele havia encontrado um totem. Um objeto de conhecimento pleno com um efeito
borboleta.
O livro, em sumo, era a história de um
imortal. Alguém fadado a sofrer durante toda a eternidade. Codinome: o
Arquivista. Seu objetivo era percorrer a existência documentando tudo que
fugisse do normativo, rotineiro.
A humanidade possuía seus historiadores, que
procuravam, por meio de documentos, acerca de fatos e pessoas. Outras fontes
poderiam ser levadas em consideração, mas os documentos, por algum motivo,
possuíam alto teor de credibilidade.
Num primeiro instante, pareceu bom demais para
ser verdade. Depois, quando começou a se estabilizar, olhou-se no espelho e não
viu muito. Olhou para as mãos e notou algo diferente. Sentia-se diferente.
Respirou fundo, fechou os olhos. Procurou, dentro de si, entender o que
acontecia.
Quando abriu os olhos e, novamente, olhou-se
no espelho viu algo muito diferente do que estava acostumado. Era num sopro de
vida que ele se via sabendo muito mais que devia. E, sem se esquecer do que
havia tanto sonhado, acordou para lembrar do que, de fato, vivera.
A verdade é que a vida acontece de muitas
formas, em muitos corpos, de muitas maneiras. E nenhum homem crescido sabe como
vive um menino, assim como o mesmo menino só algum dia mais tarde poderá saber
o que é ser adulto. Os ciclos intermináveis da existência não são mais que
versões da mesma história.
Uma mentira não é mais que uma distorção da verdade
imediata, que percorre a si mesma numa linha do tempo alternativa. A ilusão não
é mais que a verdade escondida. Assim, percebe-se que as três coisas são o
mesmo, uma realidade repartida entre quem escuta, quem enxerga e quem
participou.
A simplicidade humana, mesmo a infantil, não
pode aguentar mais do que foi projetada para tal. Embora a imaginação seja um
artifício da fuga existencial da mente, é impossível determinar com exatidão se
o corpo humano poderia aguentar uma realidade além do simples.
E o mito se desconstrói a partir de outras
ideias que surgem com o tempo, para substituí-lo. A humanidade não prevê o
passado, mas parece sonhar com o futuro. É o mais natural da sua mentalidade.
Procurar o impossível e, mesmo assim, abomina-lo.
Cada moeda possui dois lados e um é
desconhecido pelo outro. Mas o centro conhece cada ponto da moeda. Desde o raio
até um ponto isolado no comprimento. Cada corda não é mais que um loop na sua
feitoria, assim como cada coisa, em sua respectiva realidade, não é mais do que
deve ser.
O comportamento das coisas é afetado por si
mesmo numa onda estática irreversível e cíclica. Chama-se destino por
desconhecer uma palavra melhor para aplicar. A sina das coisas, o destino das
portas. Aonde se vai quando se precisa ir. O caminho que se deve tomar quando
não se pode ficar parado. O que acontece quando se faz alguma coisa e a
respectiva conclusão.
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